Como cancelei a minha agenda pessoal neste final de sábado, publico mais uma das minhas crônicas, só pra azarar os ilustres navegantes deste blog.
Ainda não encontrei a crônica da marcha do MST - mas, que coisa gente, ou melhor, que trem danado, sô! Acho que vou ter que relembrar aquele acontecimento puxando o que restou na memória. Claro que as impressões no calor dos acontecimentos guardam elementos que são percebidos apenas no momento exato em que você vivencia a coisa, entenderam? Passado um tempo, estes sentimentos evaporam e ficam alguns recortes dos recortes, que são percebidos com o olhar de quem não estava lá, mesmo quando era a gente que estava lá. A gente muda, para pior ou para melhor, e isso faz toda a diferença.
Bom, mas o fato é que, a crônica que publico hoje nada tem a ver com o MST e foi escrita em maio de 2002 e faz referência a meados da década de 70, numa época junina do ano e do começo do final dos anos de chumbo no Brasil. Portanto, ela traz essa distância temportal de quase 30 anos, período em que eu já havia morrido e renascido pelo menos umas 10 vezes. Então, com essas considerações psicográficas e filosóficas iniciais, vamos ao texto:
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"Viagem no tempo
Quebro o silêncio que me envolve, com uma antiga música do Bee Gees. Faixa de um CD pirata que peguei emprestado de alguém. Ninguém nunca cobrou do Império britânico as práticas de pirataria patrocinadas pelos lordes ingleses em alto mar, por que cargas d'água haveriam de reclamar de cidadãos de segunda categoria, que habitam o quintal das Américas? Ora, essa! Assim, sem constrangimento algum, curto a melodia que me coloca em contato com um outro momento. Uma fileira de outros cantores e grupos, entre nacionais e internacionais, aguarda a sua vez. Não há fronteira para a música, nem para o bom – ou mau – gosto, de acordo com o (des)gosto de cada um.
Uma coisa puxa a outra e eu acabo me arrastando, no pensamento, até meados da década de 70, do século passado. Parece que foi ontem e me vejo correndo, ao lado de um monte de gente, atravessando as noites do pacato Arraial. A cada dia, um desafio, uma aventura a ser descoberta. Na noite anterior, havíamos feito uma prática de rotina, uma ronda noturna, que consistia em apagar os relógios das casas na hora da novela, em torno das 8. Ouvia-se o xingatório de longe, quando o último garoto, maroto, já havia quebrado a esquina.
Mas, naquela noite, algo prometia. Era véspera de festas juninas e o comércio local ofertava as bombinhas de São João. Pela manhã, havíamos descoberto uma bem diferente, que consistia em várias unidades explosivas presas num mesmo cartucho. Quando uma delas estourava, começava um verdadeiro pipocar das demais. Bin Laden, nessa altura, devia estar queimando petro-dólares, rodeado, provavelmente, de uma de suas escolhidas, numa casa noturna qualquer, sob o patrocínio do hoje inimigo Tio Sam.
O Brasil estava, ainda, envolto nas trevas da dita dura, com a imprensa convenientemente amordaçada, enquanto muitos sonhadores eram torturados nos porões do regime. O Arraial, como a quase totalidade das cidades pequenas, estava fora deste mapa. Estava dentro, política e geograficamente, mas respirava-se outros ares, literalmente. Nadavam-se em outras águas, também.
A garotada atravessava as noites invadindo quintais, construções, praças e ruas como se tratasse de um território aberto, sem muros e fronteiras, além daquelas impostas pelos costumes. Pelo menos quando estávamos em bando era esse o sentimento. Qual o limite para o nosso fazer? Quem se atreveria a nos desafiar?
Ingenuidade à parte, partimos para mais uma noite de aventura. A novidade bombástica nas mãos, pronta para ser testada, e um grupo, que naquela noite, especificamente, aproximava-se da casa dos 20. Alguém acende o fósforo, o outro retira a bombinha da sacola e um terceiro atira o objeto aceso no pátio de uma escola pública, onde se encontrava um vigia noturno. A cena foi engraçadíssima e resultou, naquele dia, pelo menos, na interrupção das aulas. Felizmente, não houve mortos nem feridos. Aquilo era apenas mais um ato de gente sem o que fazer.
Dia seguinte, o bando todo já havia sido localizado e a meninada teve que responder à intimação na delegacia, com a presença dos pais e tudo mais - afinal, nesta hora, ser "de menor" tinha alguma vantagem. A acusação que pesava sobre nós era clara: "terroristas"! Nos dias de hoje, provavelmente, o governo de Mr. Bush reivindicaria o direito de extraditar o grupo. Mas, no tranqüilo Arraial, apesar do clima de terror que ainda dominava o cenário nacional, o delegado, um coronel reformado, teve outra interpretação. Depois de um clássico sermão, com os olhares de natural aprovação por parte dos pais, o delegado concluiu que, daquela vez, passava: "Só desta vez, hein!", completou, com o dedo em riste. Ato seguinte, passou a mão no inquérito e o rasgou, nos desqualificando da condição de terroristas.
A par disso - e apesar disso -, o que nos vinha à mente, naquele instante, era uma melodia diferente, que não tardava a chegar. A melodia da lua, das estrelas, do silêncio noturno, que trazia o mistério das conspirações e das aventuras. Num instante, contudo, o CD pirateado chega ao fim...e a linha do tempo, qual linha telefônica, é abruptamente cortada, trazendo-me de volta. É tarde já. Dominado pelo sono, me deixo levar pelo embalo de uma outra música: aquela que se extrai do silêncio profundo, quase absoluto."
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- Ocupação Dandara
- Rede de Comunicadores pela Reforma Agrária
Leiam também o novo artigo do combativo colega Wladmir Coelho: "Eleições 2010: farsa e blá, blá, blá".
Prezado amigo Professor Euler:
ResponderExcluirDepois da reconquista da Democracia, o jornal ''Pasquim'' voltou a circular como revista e com o nome de ''Bundas'', para satirizar a revista Caras. Eu não sabia disso, até que um dia na Escola Municipal Belisário Moreira, alguém me disse que Ressaquinha havia saído na revista, que cobriu integralmente a marcha do MST. É uma edição de 1999. Talvez em outras edições da revista se conste as marchas do MST realizadas em outros anos.