segunda-feira, 26 de julho de 2010

Um projeto que balançou a Câmara Municipal de Vespasiano


O ano era 2006 e eu acabara de assumir um dos cargos de professor de História da E.E. Machado de Assis. Último professor a chegar na escola na área de História, era normal que ficasse com as turmas que por exclusão são "entregues" aos professores novatos na escola. O meu cargo de 18 aulas foi distribuído entre manhã, tarde e noite, o que me fez comentar com alguns colegas que eu era o primeiro a chegar e o último a sair da escola. Para um cargo, em torno de 500 alunos distribuídos em 12 turmas. Os intervalos eram preenchidos com o meu então segundo cargo, na rede municipal.

Foi no Machado de Assis, ou "Machadão", como dizem alguns, que eu estudei de 5a a 8a série e também o Segundo Grau completo. Acompanhara portanto como aluno muitas mudanças físicas no colégio, que é considerado a escola-polo de Vespasiano. Pode-se dizer que fui aluno num tempo em que a maioria dos estudantes morava na parte central da cidade, incluindo o Célvia antigo e o Caieiras Velho, já que ainda nem existiam os conjuntos habitacionais Caieiras e Morro Alto e nem tampouco a maioria dos bairros, como: Jardim da Glória, Vila Esportiva, Gávea I e II, Jane, Vale Formoso, Vista Alegre, entre outros.

Na condição de professor, duas décadas depois, notei que a grande maioria dos alunos, para a honra e glória da escola, era originária justamente destes novos bairros, já que os moradores da parte central envelheceram, ou se reproduziram em menor número, ou mudaram-se para as franjas da cidade, dando lugar ao comércio.

Mas, aluno é sempre aluno, embora os contextos sejam outros. Minha relação com os alunos sempre foi muito boa, de respeito e de conquista mútua de confiança, descobertas e trocas de conhecimento. Claro que há sempre exceções, de alunos que em dados momentos estão mal humorados, ou da nossa parte também, que nem sempre estamos inspirados e pacientes como deveria ser. Mas, são conflitos que a gente sempre resolve nos limites da sala de aula, ou, no limite, convidando o aluno a uma cordial visita à sala da vice-direção ou da supervisão. Até nessas situações é importante manter o respeito e a dignidade, de ambos. Não posso reclamar quanto a isso: em todas as escolas que lecionei (no Renato Azeredo, no Machadão, no Padre Senabre, no José Paulo, no Cesec Vila Esportiva e por poucos dias no Francisco Viana) nunca tive grandes problemas na relação com os alunos, embora reconheça que haja uma grande mudança de contextos e comportamentos em relação à minha época enquanto aluno do ensino público básico.

A desestruturação das famílias em função mesmo das realidades marcadas pela correria do mundo atual, com o aprofundamento dos problemas sociais, das enormes desigualdades, e também pelas mudanças de valores, acabaram por transferir para as escolas - ou para os/as professores/as- responsabilidades e encargos que antes ficavam a cargo dos pais. O professor hoje é um pouco pai, mãe, psicólogo, disciplinador, babá, separador de brigas, e de vez em quando ele consegue ser professor, aquele que consegue passar o conteúdo no processo de ensino-aprendizagem dentro dos contextos vividos pelos alunos.

São os tais ossos do ofício, de um ofício que reluta em mudar, em avançar para além do pó de giz, cuspe e quadro, além da separação mecânica das disciplinas, dos tempos divididos em módulos e enquadrados em fraçoes fixas de tantos minutos, quando se deveria ter avançado para projetos que envolvessem todas as disciplinas em torno de conteúdos que pudessem ser trabalhados em diferentes espaços, tempos e equipamentos múltiplos, respeitada a autonomia de cada escola para organizar sua política pedagógica. Isso sem falar no salário... Salário? Que salário? Enfim, algum dia isso muda e chegaremos lá.

Enquanto isso, nos limites dados ao professor e no cumprimento daquilo que foi estabelecido formalmente no início do ano, vamos adaptando os nossos fazeres às realidades encontradas. No segundo semestre de 2006 eu acompanhava à distância o desenrolar da grande rebeldia liderada inicialmente pelos professores de Oaxaca, no México. Uma verdadeira revolução estava em marcha naquela região do México. Uma revolta contra o governo, contra o sistema, bem maior e mais radical do que a nossa maravilhosa revolta-greve dos 47 dias, aqui em Minas.

Pela Internet, acompanhava as manifestações, os vídeos e fotos produzidos, de uma história de rebeldia contra um governo truculento e criminoso. Achei que era uma boa oportunidade repartir a percepção daquela realidade com meus alunos. Mas, era uma realidade muito distante geograficamente daquela vivida por eles, embora pudesse guardar semelhanças em muitos aspectos.

Ao invés de levar as informações prontas e acabadas, com a minha visão de mundo, achei por bem pedir para os alunos pesquisarem a respeito e produzir trabalhos em grupo. Como um dos focos da pesquisa conduziria necessariamente à relação de poder entre a população de baixa renda e o poder estabelecido, ligado a determinados grupos sociais, considerei por bem estimular os alunos a uma pesquisa paralela, mais próxima do nosso cotidiano. Desta feita, seria realizado um trabalho de visita à Câmara Municipal de Vespasiano, cujos edis se reúnem uma vez por semana (na época, toda 2ª feira, às 15h ou 15h30 mais ou menos).

A primeira pesquisa, a da revolta em Oaxaca, seria feita basicamente através da Internet, complementando com o parco noticiário da mídia. A outra, ao contrário, era um trabalho de campo, extraclasse, onde os alunos teriam que visitar pessoalmente o parlamento local, assistir a uma reunião, pelo menos, observar e anotar os temas discutidos, o posicionamento dos vereadores, se havia presença de populares durante às sessões, etc. Caso houvesse possibilidade, convidaríamos os vereadores, ao final das sessões, para responder às perguntas ou dúvidas dos alunos.

O resultado das pesquisas seria levado para a sala de aula, discutido entre os diversos grupos, que produziriam relatório e o apresentariam para as respectivas turmas. Este projeto, ao qual dei o nome de "Cidadania e poder", envolveu turmas do 1º grau (duas turmas da 8ª série) e várias turmas do 2º grau, incluindo alunos dos turnos da manhã, tarde e noite. Os alunos do 1º grau eu os acompanhei até a Câmara, enquanto os do 2º grau, até porque eu lecionava na hora das sessões da Câmara e não estava liberado para acompanhá-los, foram sozinhos àquela Casa, apenas com as recomendações de costume: "meninos e meninas, comportem-se bem, saibam ouvir, anotem tudo, se puderem entrevistem os vereadores e a comunidade presente, mas sejam educados". Ponto.

É bom destacar que eu não combinei nada com os vereadores, pois queria que os alunos acompanhassem a realidade tal como ela é e não algo artificial, como, de certa forma, aconteceu na minha época, quando era ainda aluno do Machado. Fui a uma reunião na Câmara com meus colegas de turma numa sessão que foi toda preparada para nos receber, com direito a lanche ao final e tudo mais. Mas, eram outros os tempos e mesmo assim, apesar do cenário artificial, lembro-me que captamos detalhes que à época geraram debates entre os alunos e a professora de História que proporcionou aquele instigante trabalho.

Assim, lá vou eu com a cara e a coragem conduzindo uma turma de 8ª série para uma primeira visita à Câmara. Esperamos o recreio terminar e fomos direto para o legislativo local. A turma era bem agitada, mas se comportou bem no trajeto, considerando que eu estava sozinho a conduzi-los. Ou seria o contrário? Chegamos por volta das 16h para assistir à reunião que normalmente começaria por volta das 15h30m. Para nossa surpresa, assim que chegamos a sessão foi encerrada e um grupo de pessoas da comunidade que assistia a reunião nos informou que o término da mesma tinha sido provocado por nós, pois os vereadores souberam da nossa visita àquela Casa e o presidente teria "apressado" o final da sessão. Não sabíamos que a nossa presença era tão assim, digamos, indesejada (kkk).

Mas, tudo bem, não poderíamos perder a caminhada, nem a paciência. E também não poderíamos decepcionar os alunos que alimentaram grande expectativa para aquele acontecimento. Imediatamente pedi aos alunos que sentassem nas cadeiras da frente do espaçoso auditório da Câmara e fui até onde os vereadores costumam se reunir após as sessões para o lanche e convidei-os para um diálogo com os alunos. Fiz o mesmo convite aos poucos moradores que lá estavam assistindo às reuniões, entre eles a professora Santuza e o Rogério do PT, que marcavam presença em quase todas as reuniões da Câmara.

Santuza e Rogério toparam na hora e apenas dois dos 10 vereadores se dispuseram a dialogar com os alunos, um deles ligado ao governo e a outra da oposição ao então prefeito. Portanto, um grupo bem representativo: dois líderes da comunidade, um vereador do governo e uma vereadora da oposição. Fizeram uma exposição inicial rápida sobre os problemas da cidade e também sobre o papel do poder legislativo e sua relação com o poder Executivo. Os alunos ouviram em silêncio e em seguida fizeram questionamentos. É importante frisar aqui algumas observações que colhemos para nossa avaliação do trabalho. Por exemplo: um dos alunos que em sala de aula tinha baixa produção e geralmente conversava muito, naquele momento assumiu uma postura de liderança, fazendo muitas perguntas de forma coerente e inclusive chegando a deixar o vereador do governo de "saia justa". O estudante insistiu para que o vereador apontasse uma obra pelo menos que ele tivesse levado ou indicado para o bairro que ele representava e o vereador não conseguiu atender a esta pergunta. Enrolou, enrolou e nada. Vários alunos fizeram perguntas interessantes, demonstrando o quão importante é este contato fora da sala de aula.

As visitas dos alunos do 2º grau foram emocionantes, embora eu só ficasse sabendo por meio dos relatórios que eles produziram e do ti-ti-ti que gerou na cidade. Houve um caso, por exemplo, de uma turma que combinou de assistir em grupo à reunião da semana seguinte. Quando lá chegaram, os alunos presenciaram um bate-boca entre alguns vereadores e cidadãos que assistiam à reunião. O presidente da Câmara, ao perceber a presença dos alunos testemunhando o inflamado debate ficou preocupado. Na condição de alunos, mas também enquanto cidadãos, os estudantes acabaram se envolvendo na polêmica, aplaudindo ou vaiando o que acharam importante, de acordo com o critério deles. Diante disso, o presidente da Câmara tratou logo de encerrar a sessão. Neste momento, disseram-me que uma das estudantes levantou-se lá de trás do auditório e disse em voz alta:

- Não senhor, você não vai encerrar esta reunião não! Nós viemos aqui para assistir os debates e produzir um relatório e vamos fazer isso". Todos os presentes aplaudiram-na.

E em seguida a referida aluna chamou todos os colegas para irem para a frente do auditório próximo dos vereadores e exigiu a continuidade da reunião. O fato é que a coisa rendeu. Esta mesma aluna foi atrás de alguns vereadores para entrevistá-los, visitou vários moradores que estavam na Câmara, inclusive a combativa professora Santuza, numa iniciativa pessoal, sem qualquer orientação da minha parte, que havia pedido aos meus 500 alunos apenas que eles comparecessem a uma das sessões semanais, anotassem o que estava sendo discutido e se possível conversassem ali mesmo com moradores e vereadores após o término da sessão. Tudo como parte do projeto "Cidadania e poder" que havíamos preparado em sala.

O fato é que a presença dos estudantes do Machado durante três ou quatro semanas incomodou os vereadores, a ponto do presidente daquela Casa ter reclamado diretamente com a diretora da escola, afirmando que "os alunos do Machado estão fazendo baderna na Câmara". A diretora da escola me procurou e eu esclareci sobre o trabalho e seus objetivos. Ela pediu que eu redigisse um ofício formal respondendo à fala do presidente da Câmara, o que eu fiz imediatamente, destacando a minha estranheza para com a atitude do nobre edil, que deveria estimular a presença e a participação cidadã dos estudantes, ao invés de criticá-los. A diretora encaminhou o ofíco para a presidência daquela Casa, dita do povo.

Mas, quem realmente lavou a minha alma foi um estudante do 1º ano do 2º grau (que coincidentemente tinha sido meu aluno na 6ª série no Padre José Senabre), ao participar de uma conferência na Câmara, que discutia as diretrizes e bases do orçamento municipal, com a presença de todos os vereadores e de lideranças de todos os bairros. Este estudante, brilhante aluno, foi eleito lá mesmo para representar a comunidade na apresentação das propostas formuladas pelos grupos de trabalho. E como ele havia participado do nosso projeto, não deixou barato e aproveitou a oportunidade para "lembrar" aos vereadores que aquela Casa era do povo e narrou a experiência que os alunos viveram. Puxou literalmente as orelhas dos vereadores, mostrando que a cidadania se constrói assim, com a participação e com o devido respeito à comunidade. Mereceu palmas de todos os presentes.

O projeto "Cidadania e poder", envolvendo a rebeldia em Oaxaca e as visitas à Câmara de Vespasiano foi para mim e para meus alunos uma importante experiência. Diferentes análises foram realizadas; os alunos produziram belíssimos relatórios e muitos se interessaram em conhecer melhor a vida política da cidade, do Brasil e do mundo, pois o contato prático com alguns instrumentos de poder - para além daqueles que no cotidiano todos nós estamos submetidos - colocou-os na "linha de fogo", digamos assim, enquanto pesquisadores, mas também enquanto cidadãos.

Dadas às limitações a que fiz referência no início do texto, não pudemos desenvolver e explorar ainda mais o projeto, mas, dentro desses limites colocados, o projeto cumpriu plenamente seus objetivos. E até hoje vários ex-alunos com os quais encontro nas ruas da cidade comentam comigo aqueles momentos e me perguntam (ou cobram de mim) se eu estou realizando o mesmo trabalho com os atuais alunos. Enfim, foi uma experiência que marcou positivamente as nossas vidas. E que de alguma forma foi possível perceber o quanto, seja em Oaxaca ou em Vespasiano, a participação - ou a omissão - direta das pessoas pode fazer toda a diferença.


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Leiam também no blog S.O.S. Educação Pública o artigo "Férias Relâmpago", da nossa colega professora Graça Aguiar, que corretamente reclama mais tempo livre para professores e alunos.


Acompanhem também o Boletim Nº 18 do Blog do COREU sob a coordenação do nosso amigo e colega Wladmir Coelho. A partir de agora o Blog do COREU publica também os artigos do jornalista Pedro Porfírio.

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