quarta-feira, 16 de junho de 2010

A um passo do piso e da copa



Era para ser um dia de Copa. Não aquela que fica na antesala da cozinha. No meu caso nem isso tem: quarto, banheiro, cozinha conjugada com sala, e tá muito bom pra quem é, diriam meus amigos mais confiáveis. O dia era dia Copa do Mundo, a da África do Sul de Mandela, quando as pessoas, aqui no Brasil se vestem de verde e amarelo e no lugar do hino, tocam uma corneta de nome estranho e de um som mais estranho ainda, de difícil descrição. Não é melodia, seguramente. É um som, ou barulho, que às vezes incomoda, às vezes não, dependendo da distância de quem o ouve.

Ao acordar, por volta das 8 horas da madrugada, o sol ainda estava distante da minha janela. Deveriam fazer quartos com janelas que no inverno tomassem sol da manhã à tarde. Mas, ocorre o inverso: no verão o sol bate sem cessar. Um inferno. No inverno, ao contrário, é coisa rara. Por isso acordo com muitos agasalhos e com o pensamento voltado para o piso e para a copa. O piso está frio, muito frio, e a copa, bem, a copa, como eu disse, nem existe no meu pequeno bunker.

Como hoje pela manhã estava só, iniciei os preparativos para uma breve refeição. Um pão dormido, com gosto de ontem, uma leve camada de margarina, alguns biscoitos tipo pedagógicos, daqueles que todo professor em efetivo exercício conhece bem. Enquanto a água mineral está no fogo, em pequena quantidade, jogo uma colher de pó do café instantâneo na xícara que ganhei, um punhado de açucar cristal e vou sentindo o aroma artificial do café enquanto bebo, como e penso.

Havia dormido uma noite estranha. Quase nunca lembro dos meus sonhos. Talvez porque sejam realistas demais, ou porque estão num outro plano, imperceptível para minha modesta compreensão das coisas. Pode ser. Deixei de pensar com o que poderia ter sonhado quando fui subitamente despertado pelo som da tal corneta da copa. O jogo era a tarde, mas começaram cedo a buzinar e a comemorar uma possível vitória do Brasil. Oxalá aconteça.

Embora fosse criança ainda nos tempos da ditadura, soube, por dever de ofício e pela convivência com pessoas que nasceram uma década antes de mim, que o futebol fora usado durante a Copa para esconder as mazelas de um regime civil-militar que prendia, torturava e executava os opositores do governo. Brasil, ame-o ou deixe-o, era uma das frases de efeito da propaganda do governo de então. Década de 70, com uma seleção de craques liderada por Pelé. Dá-lhe Brasil, o eterno país do futuro para a maioria dos seus filhos. País do carnaval e do futebol. Por mais que esses acontecimentos possam parecer alienantes eles carregam um certo simbolismo de uma recusa radical dos de baixo contra a ordem estabelecida. Ou eu estaria forçando muito a barra para dourar uma pípula que não merecesse outra interpretação que não aquela que a realidade diz: é o que é, e pronto?

Do café me pus em contato com a Internet, meu contato mais ágil com o mundo e com muitas pessoas ao mesmo tempo. Ouvia os gritos da Copa na janela de casa, que faz divisa com o passeio, enquanto mergulhava na rede em busca de informações sobre o nosso piso, o nosso ganha-pão. É uma novela este piso dos educadores. Da esfera federal, passando pelo STF, depois pelos estados, até morrer na praia, digo, nos municípios. Nunca vi tanto caso em função de uma ninharia tão pequena, isoladamente falando, quanto o piso salarial dos educadores. Mas, como parece distante este piso. Um frio que se percebe antes de tocá-lo. E eu retiro os pés do piso do meu bunker e os coloco sobre a cadeira mais próxima. E a Copa não pára de fazer barulho.

Nos jornais, as notícias falam do novo salário dos educadores de Minas. Para quando? Ah sim, para março de 2011. O piso de 2006 foi aprovado pelo Congresso Nacional em 2008, driblado pelo STF e lançado para vigorar em janeiro de 2010. E antes que caisse na rede do meu bolso, o governo de Minas mandou para o escanteio das águas de março de 2011. Nem haverá Copa naquele distante ano, mas no anúncio do salário futuro, vive-se em plena Copa. E viva o Brasil!

Foi na Copa, no dia de estréia do Brasil na África do Sul que o governador de Minas anunciou as novas tabelas salariais. Foi na Copa também que o presidente da República vetou o fim do fator previdenciário, criado pelo ex-presidente e mantido até agora. Ainda bem que eu estou muito longe de aposentar e até lá, se Deus quiser, já estaremos recebendo o piso. De preferência sem fator previdenciário.

Bem faz o Joãozinho Martinho, admirador
do grande Nelson Mandela, tanto quanto eu e os demais mortais de bom senso, que tem duas aposentadorias engatilhadas, só aguardando o desfecho de duas coisas simples: que não seja mais preciso fazer greve para conquistar salário mais justo e que paguem o salário integral nos dois cargos. Pelo visto, vai demorar a aposentar.

Mas, nem era de salário que eu queria falar. Era da copa e do piso. Na copa que não existe no meu barraco - mas que na janela não pára de passar -, e do piso que está frio. Inda hei de colocar aqui um aquecedor, quando o meu contracheque acusar os valores que estão anunciando na TV para o futuro do meu salário e com isso for possível quitar a conta de luz com o adicional de um aparelho que aquece o piso, a sala, o quarto, o banheiro e a cop... Opa, meu bunker não tem copa. Só do lado de fora da janela.

No primeiro tempo, fraco. Reparei que um jogador da Coreia do Norte chorou muito quando tocaram o hino do país que ele representa. Não sei se de tristeza ou de alegria. Ou de ambas. O hino do Brasil eu ouvi sem chorar, às margens plácidas da minha cama larga e confortável, enquanto pensava no material que deveria levar para a escola à noite. Êta primeiro tempo fraco, gente. Nada de gol. Até o sono veio. Despertei já nos primeiros minutos do segundo tempo, quando o sol, manhoso, deu de invadir a janela do quarto e gritar no meu ouvido. Eram as cornetas do lado de fora, naquele som mais para barulho do que para melodia. E eu sonhando com o piso, que já nem estava tão frio assim, enquanto a coisa esquentava na sala onde representantes do governo e do nosso sindicato discutiam o futuro da educação em Minas.

Seria tudo uma questão de tempo, espaço, momento: eu aqui quase dormindo, as meninas do sindicato com o peso de 47 dias de greve e 200 mil educadores nas costas; os meninos do Brasil na África do Sul com o peso de quase 200 milhões de brasileiros, marcando finalmente um gol e um monte de gente de amarelo e verde a tocar a corneta de nome estranho que não consigo guardar.

Será que sai alguma coisa desse mato? Qual deles? Do governo? Da Copa? Do piso? Ou do sono? Não sei. Mas, o Brasil tem uma pequena chance de vencer a Copa. E nós, uma chance menor ainda de conseguir alguma coisa para este ano. Então, até março, sem copa e sem piso, melhor mesmo é voltar a dormir.

11 comentários:

  1. Euler, meu amigo. Desista de estudar o que é piso e o que é teto. Choque de gestão é a solução. O governador não perguntou se nós queremos ou não aquela estrutura salarial. Ele já anunciou!!! Em março, pagamento em abril/2011, será aquela a tabela. Choque de Gestão é assim, não tem discussão. Esta é a democria de Minas... Assim que Minas avança... e morde o professor.

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  2. É rapaz...

    Você é simplesmente fantástico!

    E o bom que você existe.

    Bom dia para todos.

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  3. ôooooo gostei do texto, Na véspera da Assembléia, um refresco para rir da vida, da nossa situação, do Brasil. Gostei dessa crônica da vida real. Um abraço corajoso companheiro!!!

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  4. Adoro ler suas crônicas!
    Ao mesmo tempo que nos informamos das últimas nessa nossa louca luta pelo "piso",nos divertimos com suas palavras sempre muito bem colocadas...
    VALEU COMPANHEIRO!!!!!!!!!!!!!!!!

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  5. Caro Euler, após ler sua crônica da vida real e rir muito, resolvi lhe escrever novamente, para dizer a vc que após ter rido muito, chorei muito tbem, porque imaginei que essa situação de pobreza, de falta de dinheiro no bolso para cobrir as despesas do mês, ainda mais agora, após o corte do pagamento, pude ler a dimensão da crueldade deste governo que anuncia um aumento para o ano que vem e ao mesmo tempo disponibiliza na internet o restalho que ele usurpou dos nossos salários e que não se encontra ainda nas nossas contas correntes;e isso tudo ás vésperas da Assembléia estadual.
    Meu esposo ao me ver chorando, tirou da carteira 10,00 reais e me disse: vai fazer o cabelo. Ele tinha visto que eu já me encontava no vermelho. È pra rir ou pra chorar?

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  6. Parabéns pela crônica, o que tenho para acrescentar entre tudo que o que disse é que peguei uma baita DENG na escola. Lá pernilongo é igual ao governo. Não te da condições de escolha. QUER SER PICADO OU SE PREVINIR CONTRA MIM? Mesmo assim vc será picado. Doi tanto quanto a falta do salário no bolso. É desesperador quanto. Abraços amigo e sucesso amanhã, já que não poderei estar lá pra gritar pela justiça. Por caridade faça-o por mim. BJS

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  7. Olá Marly,

    Realmente só rindo para não chorar muito, né? Ms, com a nossa luta haveremos de mudar esta situação. Tenho fé na força da nossa categoria unida e organizada.

    Um forte abraço companheira,

    Euler

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  8. Eliane, colega, tá dengosa? Se cuide bem, companheira, pois precisamos de vc com muita saúde para enfrentar os governos e arrancar na luta os nossos direitos.

    Um abraço,

    Euler

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  9. Rosângela,

    Obrigado pelas palavras e pela visita.

    Um abraço,

    Euler

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  10. Adriana,

    Tem toda razão. Nada do que se fez em Minas nas duas gestões do faraó houve consulta aos cidadãos. Por que fariam diferente agora, né?

    Um abraço,

    Euler

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  11. Parabéns pela ótima crônica. Também falei sobre a copa no meu blog, mas o meu tom foi muito azedo,mencionei a atrocidade do governador com os professores mineiros.
    Mantenham-se firme e como diz o samba "foi traído e não traiu jamais a Independência de Minas Gerais..." continuem hoje, como no passado a serem um exemplo para todo o país de independência e garra na luta contra a opressão.

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