quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

No Brasil, 310 milhões de hectares de terras devolutas para o agronegócio



No Brasil, 310 milhões de hectares de terras devolutas para o agronegócio
Frei Gilvander Moreira[1]

No Brasil, os que se dizem proprietários de terras mantêm, há séculos, o controle sobre as propriedades rurais e cobram valores injustos pelo uso da terra através de arrendamento, parceria, à meia, etc. “Relação de arrendamento: terra em troca de renda em trabalho (como é o caso do cambão no Nordeste), em espécie (como é o caso da parceria em todas as regiões do país) e em dinheiro (como é o caso particularmente do arrendamento de terras no sul e no sudeste)” (MARTINS, 1983, p. 36).
O art. 64 da Constituição Federal de 1891 transfere as terras devolutas para os Estados[2], exceto as estradas de ferro e as necessárias para a Segurança Nacional, praticamente o mesmo que estabelece o art. 20, II[3] e art. 26, IV[4]da Constituição Federal de 1988. Assim, “as terras devolutas são colocadas nas mãos das oligarquias regionais. Cada Estado desenvolverá sua política de concessão de terras, começando aí as transferências maciças de propriedades fundiárias para grandes fazendeiros e grandes empresas de colonização interessadas na especulação imobiliária” (MARTINS, 1983, p. 43).
Por meio do Censo Agropecuário de 2006, o IBGE detectou a presença de 310 milhões de hectares de terras devolutas no Brasil.[5] Entende-se por “terras devolutas aquelas que jamais tenham sido propriedade de alguém ou tenham tido uso público reconhecido, propriedade e uso pelo Estado” (MARÉS, 2003, p. 70), sendo, portanto, as terras legalmente não adquiridas. “Estas terras devolutas estão distribuídas por todo o país. A região Norte possui mais de 80 milhões de hectares de terras devolutas, das quais 40 milhões no estado do Amazonas e 31 milhões na Pará. A região Nordeste tem mais de 54 milhões de hectares de terras devolutas, sendo que a Bahia tem mais de 22 milhões de hectares e o Piauí mais de 9 milhões de hectares. A região Sudeste por sua vez, tem um total de mais de 16 milhões de hectares de terras devolutas e entre os estados com maior presença está Minas Gerais, com mais de 14 milhões de hectares. A região Sul tem, também, mais de 9 milhões de hectares de terras devolutas e o estado do Rio Grande do Sul tem mais de 6 milhões de hectares destas terras. A região Centro-Oeste concentra por sua vez, cerca de 12 milhões de hectares das terras devolutas e o estado de Mato Grosso sozinho tem mais de 9 milhões de hectares” (OLIVEIRA, 2010, p. 299).
Nas décadas de 1970 e 1980, em Minas Gerais, grandes extensões de terras devolutas[6] foram repassadas para grandes empresas em convênios firmados entre o Instituto de Terras do Governo de Minas Gerais (ITER) e aquelas empresas, que hoje as usam, quase exclusivamente, na monocultura de eucalipto. Muitos desses convênios estão vencidos.
Com uma população de 21.055.660 milhões de habitantes, em 2016, Minas Gerais, em 2015, tinha 30,9% do território mineiro usado para pecuária, com 23,9 milhões de cabeças de gado (Fonte: IBGE), sendo 11,5% do rebanho do País[7]. Minas Gerais, em 2006, tinha o segundo maior rebanho do Brasil com 19,9 milhões de cabeças (Fonte: Censo agropecuário 2006, p. 155). “Minas Gerais, em 2006, era maior produtor nacional de leite, com 27,9% da produção total, superior à soma da produção das Regiões Nordeste e Centro-Oeste” (Fonte: Censo agropecuário 2006, p. 158).
Atualmente, o capitalismo no campo possui novos contornos e para evitar a desapropriação de seus imóveis improdutivos, os grandes proprietários e empresas escondem-se sob a propaganda do agronegócio. Em Minas Gerais, o chamado agronegócio surge com a imposição de uma política agrícola que pregava a modernização da agricultura, modernização colonizadora e violentadora, para ser exato. O objetivo era permitir que grandes empresas estrangeiras introduzissem insumos químicos no mercado brasileiro, obtendo grandes lucros e tornando-nos dependentes de um ‘pacote’ tecnológico imposto. Assim, nasce a Japan International Cooperation Agency (JICA) com o Programa de Desenvolvimento do Cerrado (PRODECER) promovendo as atividades do complexo agroindustrial. O ecossistema dos cerrados foi substituído por extensas áreas de monoculturas do café, da cana-de-açúcar, da soja e dos maciços homogêneos do eucalipto.[8] Em 2006 já havia mais de 3 milhões de hectares de terra com monocultura de eucalipto; com soja, 22,2 milhões de hectares e outros 6,2 milhões de hectares com cana-de-açúcar; total: 31,4 milhões de hectares (= 314.000 Km2) com monoculturas de eucalipto, soja e cana-de-açúcar (NORONHA; ORTIZ; SCHLESINGER, 2006, p. 5).  Esse processo gerou exclusão social, destruição do meio ambiente e concentração de renda. “A expansão dos chamados complexos agroindustriais tem transformado o camponês em um trabalhador para o capital, sem torná-loum operário, o que amplia as interrogações sobre a natureza da sua vida política e econômica” (MOURA, 1988a, p. 8). A expansão desse modelo agrário/agrícola capitalista leva a que “mesmo com queda de preços dos alimentos, cresce a área plantada, aprofundando as contradições entre produção de alimentos e aumento da fome no mundo” (PORTO GONÇALVES, 2004, p. 217), aumentando a concentração fundiária. Grave também é que essa expansão do agronegócio ocorre no bioma dos cerrados, o que implica em devastação de ‘uma floresta invertida’. “Os Cerrados se caracterizam por ser “uma floresta invertida”, como insistia uma das maiores autoridades em conhecimento dos Cerrados, o agrônomo/geógrafo Carlos Eduardo Mazzetto Silva, pois para cada volume de biomassa sobre a superfície, os Cerrados têm até sete vezes mais biomassa abaixo do solo” (PORTO GONÇALVES, 2014, p. 92).
Esse dado multiplica por sete a gravidade da imensa devastação dos Cerrados que está em curso no Brasil, pois ao devastar os Cerrados da superfície do solo se devastam os sete Cerrados que estão no solo. Os cerrados compunham 36% do território brasileiro, mas a maior parte dos cerrados já foi devastada. Relatório de Monitoramento do Bioma Cerrado, de 2009, do Ministério do Meio Ambiente (MMA), demonstra que os remanescentes de vegetação dos Cerrados passaram de 55,73% em 2002 para 51,54% em 2008 e que o desmatamento total no bioma dos Cerrados até 2008 representa 47,84% da área original (MMA, 2010). “Entre o período de 1985 e 1993 a perda da área do Cerrado foi, em média 1,5% ao ano. A essa taxa de conversão, seria esperado que o Cerrado venha a perder aproximadamente 3 milhões de hectares ao ano, se considerarmos a área original de 2,045 milhões de quilômetros quadrados. Entre o período de 1993 e 2002, a taxa média de desmatamento do Cerrado foi um pouco menor, com uma média de 0,67% ao ano. Com esse valor, a perda anual do Cerrado seria de 1,36 milhões de hectares ao ano, também se considerando uma área original de 2,045 milhões de quilômetros quadrados. Um cenário futuro para o Cerrado, considerando uma retirada anual de 2,215 milhões de hectares (assumindo uma taxa conservativa de 1,1% ao ano), considerando a existência de 34,22% de áreas nativas remanescentes (baseado na estimativa dada por Mantovani e Pereira [1998]) e considerando que as unidades de conservação (que representam 2,2% do Cerrado) e as terras indígenas (que representam 2,3% do Cerrado) serão mantidas no futuro, seria de se esperar que o Cerrado desaparecesse no ano de 2030” (MACHADO, et al., 2004, p. 6-7).

Belo Horizonte, MG, 09/01/2018.

Obs.: O vídeo, abaixo, ilustra o texto, acima.

Na Chapada do Apodi/RN, 800 famílias resistem a um mega projeto de agro-hidronegócio. 07/12/2012

Abraço terno na luta.
Frei Gilvander Luís Moreira
face: Gilvander Moreira III






[1] Padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, Itália;; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. 
www.twitter.com/gilvanderluis        –     Facebook: Gilvander Moreira III

[2] In verbis: Art. 64 - Pertencem aos Estados as minas e terras devolutas situadas nos seus respectivos territórios, cabendo à União somente a porção do território que for indispensável para a defesa das fronteiras, fortificações, construções militares e estradas de ferro federais.
[3] In verbis: Art. 20. São bens da União: [...] II - as terras devolutas indispensáveis à defesa das fronteiras, das fortificações e construções militares, das vias federais de comunicação e à preservação ambiental, definidas em lei; [...]
[4] In verbis: Art. 26. Incluem-se entre os bens dos Estados: [...] IV - as terras devolutas não compreendidas entre as da União.
[5] Terras que o IBGE denominou de “terras com outras ocupações”. Brasil: Área Total: 851.487.659 (100%); Área DEVOLUTA: 228.699.89 hectares (26,8%) (Fonte: INCRA 2014).

[6] Sobre “Que destino deve ter as terras devolutas?” sugerimos a leitura de PRESSBURGUER, Miguel. Terras devolutas. O que fazer com elas? Coleção socializando conhecimentos, n. 7. Rio de Janeiro: AJUP/FASE, 1990.
[7] Dados da Secretaria da Agricultura do Governo de Minas Gerais, disponível em http://www.agricultura.mg.gov.br/images/Arq_Relatorios/Pecuaria/2016/Dez/bovinocultura_leite_corte_dez_2016.pdf   , acesso em 18/12/2016 às 11h10.
[8] A Lei Federal nº 5106, de 02/9/1966, sancionada pelo general Castelo Branco, concedia incentivos fiscais a empresas e fazendeiros – abatimento de até 50% do Imposto de Renda para pessoas físicas e jurídicas - que  implementassem monocultura de eucalipto nos cerrados.

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