Viagem no tempo (literalmente)
De volta ao passado. 1960? 1970? Acordei guerrilheiro, fuzil em punho, disparo para o alto e em várias direções. Quero enfrentar um exército inteiro, que é treinado para perseguir os pobres e servir aos ricos. As montanhas viram minha utopia, minha casa, minha proteção. As árvores, que enchem o pulmão do mundo de ar puro, me protegem dos tiros inimigos. Corro, desesperadamente, até alcançar o outro lado da Serra. Não vão me atingir, jamais. Preciso de tempo, de mais tempo, para reunir minha tribo e enfrentar os inimigos com alguma chance. Zumbi, Guevara, Marighella, por onde andam? Mandem um pouco de sua coragem para despertar a ira de um povo oprimido, que não se ergue contra os tiranos que o oprimem. Em disparada morro abaixo, as balas dos fuzis ricocheteiam, atravessam as árvores, tentam me alcançar, mas não conseguem. Os pássaros me avisam quando os lobos maus se aproximam. Mergulho nas águas mansas de um rio e atravesso todo o território que circunda as montanhas. Não sei em que cidade estou. Nem mesmo em que ano. Isso importa? 1500? 1800? 1970? Não importa. Não posso parar para pensar. Há uma corrente atrás de mim e eu preciso de tempo, espaço, velocidade, luz. Eles não podem me alcançar. Não agora. Não hoje. Vamos formar o nosso exército, de homens e mulheres livres, capazes de construir um outro mundo... amanhã? Não. Não haverá amanhã sem a batalha que se trava hoje. Se a maioria da humanidade perder a capacidade de lutar por um mundo melhor, hoje, agora, ela não perde o futuro, apenas, perde a humanidade. Muito dessa onda que transformou milhares de jovens em adeptos da direita, dos de cima, é resultado disso, da morte antecipada dos sonhos, das utopias, das grandes causas que empolgaram e inspiraram milhões de pessoas em todo o mundo. Prostrados, perante a roda morta do capital, dos "moinhos satânicos", do mercado e de seus capitães do mato, não há salvação. É a rendição sem luta. A entrega sem resistência. A pior forma de derrota. No Golpe de 1964, o Cavaleiro da Esperança, Prestes, que se iludira com um suposto esquema militar que supostamente defenderia Jango da quartelada da ultra direita, viu a população se render, sem luta. Dissera na época, que aquela era a pior forma de derrota. Embora alguns poucos valentes sonhadores tomassem nas mãos uma resistência heroica, ainda que previamente derrotada, já que não romperam a bolha. E as massas... Ah, as massas... estavam encantadas com a Seleção Canarinho, com o Fusca do ano, com as canções de Roberto e com as novelas da Globo. Até que um dia, o país quebrou, a fome aumentou, e novas lideranças surgiram. Os de baixo começaram a sambar, como desejara Marighella 10 anos antes. A música que agora tocava era outra: "Vai passar nessa avenida um samba popular, cada paralelepípedo da velha cidade essa noite vai se arrepiar". Não foi bem assim que aconteceu. Aquela tormenta, como tantas outras, de certa forma passou, mas deixou marcas profundas. Meu corpo exibe a saraivada de balas que tomei - em torno de 500, mais ou menos - e a dor daqueles que foram torturados. E a realidade de um povo generoso que tem enorme dificuldade em se encontrar. E de encontrar saídas para os problemas comuns que afligem a todos. Enganados o tempo todo pela mídia dos inimigos, pelo papo furado de comentaristas de aluguel, pela vigarice daqueles que usam o nome de Deus em vão para enganar ingênuos rebanhos. Por caminhos diferentes daquela fúria rebelde que me assaltou de jovem, de alguma forma a esquerda conquistou parcela do poder. Realizou o sonho do combate à fome, à miséria, de conquistas várias, por um lapso de tempo de quase uma geração. Até que a roda morta, a correnteza do mal, tomou de volta o pouco de poder que cedera, para mostrar as garras, os dentes e os fuzis. O que me resta fazer agora é escrever, já que não tenho fuzis, nem balas, nem tribos, nem exército para enfrentar os inimigos. E o pior de tudo: já não tenho mais nem mesmo os sonhos de antes. Nem a mesma energia. E espero o dia em que um novo samba possa sacudir o chão de Minas, do Brasil e da América Latina. Espero. Agora sim, quando muito pouco me resta a fazer, eu tenho o tempo todo do mundo para esperar. (Julho/2019)
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