Quarta-feira, 26 de junho de 2013. Dia de jogo da Seleção Brasileira contra o Uruguai, no estádio reformado do Mineirão. Em outros tempos, a partida de futebol seria o assunto da semana, nas ruas, nos botecos, nas casas. O feriado municipal seria mais um momento de encontro das famílias e dos amigos para torcer pelo time da seleção do Brasil. Os tempos, contudo, mudaram. Para além daqueles que mantiveram o costume citado, outros tantos, que saíram para as ruas, aos milhares, para um outro jogo, que acontece do lado de fora dos estádios.
Quando cheguei na Praça Sete, acompanhado por um pequeno grupo de colegas educadores de Vespasiano, já era um pouco mais que meio dia. Por lá, circulavam centenas de pessoas, várias tribos, muitas bandeiras, principalmente a do Brasil, mas outras cores também. A presença da polícia era pequena e discreta. Os manifestantes, que iam se juntando, estavam tranquilos, prontos para uma longa caminhada, cada qual portando seus cartazes, apitos, bandeiras, palavras de ordem, quase todas relacionadas aos problemas brasileiros, que não foram resolvidos ao longo dos últimos séculos.
Entre os gritos e palavras mais citadas, a Educação e a Saúde - por mais investimentos nessas áreas, reclamavam os manifestantes jovens, crianças e adultos. Um consenso, a revelar um dissenso em relação aos governos e aos partidos e suas lideranças. No discurso, juram amor eterno pela Educação pública e pela saúde de qualidade; na prática, tratam com desdém e desprezo, como acontece com os governos de Minas e também do Brasil.
Por falar em Minas, lembrei-me de que andava pelas ruas da Capital deste país. Entre a Praça Sete e as proximidades do Mineirão, passando pela Antonio Carlos, foram cerca de dez quilômetros de protesto. Tive a impressão de que estava em outro país, a julgar pelos protestos dos manifestantes. Por quê? - perguntarão. Porque no país de Minas, de acordo com a propaganda do governo, TODOS os problemas da humanidade foram resolvidos. Minas é o lugar que supera todos os outros países em matéria de Educação, de saúde, de segurança, enfim, é o paraíso que nós, mineiros, e agora também os turistas, ainda não tivemos a oportunidade de conhecer.
Caminhava pelas ruas ao lado dos colegas e de outros tantos manifestantes. Parecia um carnaval diferente, uma outra alegoria, com a alegria presente, contagiante, envolta ao chamado da luta, aos protestos, aos reclamos de muitas demandas esquecidas. Ali, ouço um brado: "Não queremos copa, queremos saúde e educação"; acolá, um alerta: "Feliciano, se até o Papa renunciou, a sua vez agora chegou". Algo mais ou menos assim. E toma crítica à corrupção, aos desvios, à roubalheira, sem se especificar um partido ou governo, mas dando a impressão de que todos os políticos e governantes estavam na mira dos protestos.
Vez ou outra um grupo ou outro carregava as tintas pra cima de algum governante - Anastasia, Dilma, Aecio, Lacerda - mas, no geral, as críticas eram dirigidas a todos os governantes, exigindo mais investimentos em Educação, Saúde, transporte e segurança, entre outras.
A longa passeata, que ia assumindo um formato gigantesco e pacífico, tinha também momentos educativos. O contato entre os manifestantes era marcado por respeito mútuo, discussões entre as pessoas de diversos grupos, mostrando as diferenças que apareciam durante o caminhar. Por exemplo, houve um momento em que um jovem começou a pichar uma palavra de ordem debaixo de um viaduto. Imediatamente uma pessoa que estava próxima de nós começou a gritar: "Sem vandalismo, sem vandalismo!" Na sequência, um jovem, que também estava próximo e que não era o pichador, retrucou: "Sem moralismo, sem moralismo!". Nesse diálogo direto, sem agressão física, cada qual demarcando o seu espaço e buscando construir consensos.
Notava-se, também, além de cartazes e palavras de ordem, e apitos e bandeiras, a apresentação de enormes faixas. Numa delas, que atravessava a Antonio Carlos, defendia-se a aplicação total dos recursos do Petróleo na Educação. Um grupo com tambores e com megafone puxava várias palavras de ordem. Quando passaram perto de nós, talvez porque tivessem reconhecido na camisa do comandante Martinho e da professora Cláudia Luiza uma alusão ao nosso ofício, puseram-se a gritar: "O professor, é meu amigo, mexeu com ele, mexeu comigo".
E assim foi, durante uma longa caminhada de quase duas horas pela avenida Antonio Carlos, com algumas paradas para tomar água, até que chegamos ao campus da UFMG. Foi uma grande passeata sem a presença de polícia e marcada pelo encontro de muitos grupos, notadamente de jovens estudantes, mas não somente. Uma caminhada pacífica, diria, pelo menos até as proximidades daquele outro jogo, onde 22 pessoas disputavam os aplausos e as vaias dos milhares que estavam no interior do estádio. Do lado de fora do estádio, contudo, a chapa esquentava e o jogo era outro.
O nosso grupo se posicionou próximo da grande maioria dos manifestantes, no entorno do Viaduto José Alencar, de onde, infelizmente, acontecera novo acidente, com a queda de um rapaz. É preciso benzer aquele viaduto, palco de tantos acidentes nesses dias que abalaram o chão de BH e de Minas e do Brasil.
Do nosso pequeno grupo, apenas o comandante Martinho havia trazido máscara e uma garrafinha de vinagre, já prevendo os embates entre a polícia de choque do governo de Minas e os manifestantes. Martinho se aproximou da linha de frente, mas não sem antes ouvir as minhas expressas recomendações para não se aproximar muito da área de confronto. Joãozinho foi, viu e voltou com lágrimas nos olhos em função dos gases despejados em grande quantidade pela força de repressão do estado. Até mesmo nós, que ficamos um pouco na retaguarda, sentimos os efeitos. Durante mais de uma hora seguinte ouvimos os tiros e bombas de efeito imoral lançadas pela polícia. Disseram-me que da parte de alguns manifestantes também partiram bombas, pedras e outros objetos para revidar o ataque da polícia. Não posso dar o meu testemunho visual sobre esse fato, já que de onde me encontrava era possível apenas ouvir o estrondo causado pelas bombas da polícia, sentir os efeitos dos gases e ouvir os gritos de guerra da militância que assumia a linha de frente do combate.
Não vou dizer, como faz a mídia, que se tratava de uma guerra, ou de vândalos, ou coisa do gênero. Ali estavam presentes milhares de manifestantes, com diferentes bandeiras, com consensos em relação a várias demandas, mas com distintas visões de mundo, inclusive ideológicas. Para a maioria, talvez bastasse ocupar as ruas e mostrar para o mundo o descontentamento latente em relação a vários problemas do nosso dia a dia. Para outros, contudo, este descontentamento tinha que assumir outras formas, outros tons, chegando mesmo ao desafio físico, com a quebra das barreiras impostas pelo aparato estatal repressivo.
No post de ontem, o Frei Gilvander nos brindou com a lembrança da origem do termo "vândalo", que remonta os preconceitos do Império Romano em relação aos povos com culturas diferentes. Percebia-se claramente que a maioria dos manifestantes queriam manter uma postura de relativa paz, com protesto, mas sem cair no moralismo de recriminar uma parte da juventude que se colocou na linha de frente. No final, as razões do protesto não estavam voltadas essencialmente para o combate com a polícia, mas para que haja mudanças no país. Que mudanças? - perguntarão alguns. Mudanças em favor de mais investimento na Educação pública (sobretudo na valorização dos educadores), mais investimento na Saúde pública; um transporte coletivo melhor, mais barato ou com tarifa zero para todos; uma realidade política mais próxima da realidade do cidadão comum, e não a atual e exótica forma de representação política, que transforma os eleitores em meros figurantes de quinta categoria, sem qualquer poder real de intervenção nos processos decisórios.
A ocupação das ruas, a rigor, para mim, pelo menos, tem muito este sentido de retomada de uma consciência individual e coletiva das pessoas que querem se fazer presentes, enquanto pessoas pensantes, protagonistas do seu tempo. E este formato tem um significado maior do que o atendimento de algumas demandas. Claro que cada conquista que tem sido apontada - seja com a redução no preço das tarifas dos ônibus, seja com o arquivamento da PEC 37, ou com a aprovação dos royalties do pré-sal para a Educação e para a Saúde - reveste-se de grande importância. Mas, o movimento que ocupa as ruas, exatamente por não ter este controle de um único partido ou central sindical, com um programa fechado, não parece disposto a encerrar as atividades de protesto após meia dúzia de conquistas. Ele quer prosseguir, conquistar cada vez mais, e se tornar o contrapeso aos poderes constituídos, que se mostraram incapazes de ouvir as vozes daqueles aos quais, segundo a Carta Magna do país, todo poder emana.
Por isso, a nossa renovada saudação aos milhares e milhões de cidadãos de todas as idades, de todas as cores e tribos, que ocupam as ruas de Minas e do Brasil e do mundo também. Para que nesse encontro sejam construídos os consensos em torno dos interesses da maioria da população, especialmente dos mais pobres. E para que cada vez mais, os poderes constituídos se rendam à vontade dos de baixo, ao invés de servirem, como acontece atualmente, aos interesses da minoria privilegiada.
Viva o povo que luta, que ocupa as ruas, e que constrói, a cada momento, um outro Brasil.
Um forte abraço a todos e força na luta! Até a nossa vitória!
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